Minha Comunicação no XVIII Encontro Nacional da ANPOF
As teorias mais tradicionais sobre o desenvolvimento (Development Studies), analisadas sob uma perspectiva filosófica, assumem as matizes do discurso filosófico da modernidade. Em outras palavras, as justificações teóricas para as práticas de desenvolvimento foram produzidas recorrendo-se ao modo de sistematização do pensamento moderno. É aqui que este trabalho desenvolve as aproximações entre filosofia e o Development Studies.
A questão acerca da validade das teorias do desenvolvimento e sua suposta naturalidade, primeiramente, devem ser respondidas não teoricamente, mas a partir de sua facticidade. Devem ser respondidas a partir de uma constatação factual. Esta constatação se dá por meio de um fato denominado por Enrique Leff e por Bruce Foltz de “a crise ambiental”. Por crise ambiental, Leff (2016, p.30) define: “é o sinal e o sintoma mais forte do limite da Modernidade”, à medida que esta “esqueceu a natureza”; e para Foltz (1999), é a ameaça real da habitação futura do homem.
Para responder a respeito da importância que a temática acima teria tanto para a filosofia quanto para as próprias teorias do desenvolvimento, ou seja, quê relevância pode haver na abertura deste tipo de fronteira – filosofia e desenvolvimento – seguem-se as explicações. Seguindo a lógica de Leff (2000, p.309),
A questão ambiental, com a sua complexidade, e a interdisciplinaridade emergem no último terço do século XX (finais dos anos 60 e começo da década de 70) como problemáticas contemporâneas, compartilhando o sintoma de uma crise de civilização, de uma crise que se manifesta pelo fracionamento do conhecimento e pela degradação do ambiente, marcados pelo logocentrismo da ciência moderna e pelo transbordamento da economização do mundo guiado pela racionalidade tecnológica e pelo livre mercado.
A partir do excerto acima, é possível entender que não há como separar a crise ambiental da crise de um modelo civilizatório construído a partir da narrativa teórico-científica moderna. Em outras palavras, o acontecimento inesperado da crise ambiental (tratado por Foltz e Leff), uma crise que atingiu sobremaneira o meio ambiente, não é restrita a este, mas é uma crise do modelo sócio-econômico da modernidade; e mais, é uma crise da construção do conhecimento da modernidade, uma crise da razão. “A crise ambiental é a crise do saber” (LEFF, 2000, p.309) e como argumenta Veiga (2005), necessitamos de um novo paradigma científico.
Toda crise é um despojamento das representações da sociedade. A representação social que factibilizou a crise ambiental, tal como foi discutido acima, foi a representação moderna. Se, efetivamente, se quer trazer a discussão das teorias do desenvolvimento para o campo filosófico, aclarado pela necessidade de uma revisão de seus discursos, é necessário reconhecer quê filósofo teria esta propriedade ou qual matriz filosófica seria capaz de abrir uma discussão crítica e de fundo com a modernidade.
Giddens (1987, p.238) afirma: “A Sociologia é, em meu entender, o discurso da modernidade, o discurso da interpretação reflexiva de nós próprios emergentes do cisma radical que separou nossas vidas da vida das gerações anteriores”. Se Giddens tem razão, Marx e Weber poderiam perfeitamente ser estes teóricos que a pesquisa necessitaria. Porém, Leff (2000) pondera que
Marx afirmava que os filósofos haviam se preocupado em entender o mundo e anunciou a hora de transformá-lo. No entanto, o projeto revolucionário socialista, que desmascarou a ideologia burguesa e o do socialismo utópico – que procurou construir um socialismo científico fundado em um materialismo dialético –, não chegou a questionar as formas históricas do conhecimento como raiz e causa de exploração da natureza e da submissão das culturas. O conhecimento científico continuou sendo a alavanca do progresso econômico, a pedra de toque para a construção de um socialismo – inclusive de rosto humano – que permitiria transcender o mundo da necessidade e abrir o reino da liberdade e bem-estar para todos. O socialismo científico não questionou o vínculo do ser ao conhecimento e sua dominação da natureza.
Em outras palavras, o excerto defende que, não obstante que Marx tenha realmente feito um questionamento à representação social burguesa capitalista e propôs uma alternativa de mudança, esta mudança, por seu turno, alinhada a uma perspectiva histórico-dialética, não conseguiu fazer a crítica necessária à modernidade: a crítica a ideia de progresso calcada nas ciências modernas. O socialismo científico não aprofundou sua crítica nas bases fundantes da epistemologia moderna. A ausência desta crítica, de alguma maneira, continua reforçando os modelos teóricos do desenvolvimento moderno sem nenhuma preocupação ambiental. Ainda que Marx tenha em mente uma sociedade que erradique as diferenças sociais, projeto este bem aceito em um processo de desenvolvimento, este teórico não se debruça a respeito de como as diferenças entre seres humanos e natureza seriam erradicadas. Aqui está seu limite, segundo Leff.
Quem seria então o teórico ou os teóricos que necessariamente fariam esta crítica? Seguindo a orientação de Leff (2000, p.313),
Foram Nietzsche e Heidegger – e mais tarde os filósofos da Escola de Frankfurt – que traçaram o perfil de uma crítica radical das raízes do pensamento metafísico, da ciência positivista e da racionalidade tecnológica em sua vontade de universalidade, homogeneidade e unidade do conhecimento, de objetivação e coisificação do ser, que geraram a atual globalização unidimensional, regida e valorizada pelo modelo econômico: a “sobreconomização” do mundo.
Ao contrário de Marx (e aqui enquadraríamos também Weber), Nietzsche e Heidegger, e depois a escola de Frankfurt, teriam uma preocupação “mais filosófica” com respeito às criticas da modernidade. Eles teriam colocado em questão não um aspecto ou outro deste período, mas a própria validade desta época. São filósofos que se propõem a analisar a modernidade criticamente em seus fundamentos, aclarando seu fracasso e a necessidade de superação.
Em vista disso – seguindo a intuição de Leff – é que esta pesquisa quer seguir: sem uma radical e incisiva discussão com os fundamentos da modernidade não se conseguiria atingir o fenômeno do desenvolvimento. Acredita-se que esta leitura seria de fato a leitura estritamente filosófica do problema do desenvolvimento. Contudo, para efeitos de uma tese, seria impossível mostrar as contribuições de Nietzsche e Heidegger juntos. Um corte é necessário ser feito. Este corte será feito no pensamento de Heidegger.
As razões para esta escolha podem ser assim aclaradas: [1] Em primeiro lugar, como já se discutiu, Heidegger tem uma relação crítica e radical com a modernidade, questionando-a em seus fundamentos. Este tipo de perspectiva frente à modernidade é fundamental para que o exercício filosófico que seguirá a este projeto persiga um alinhamento realmente pertinente com sua proposta. [2] Heidegger, inquestionavelmente, é um filósofo que marcou o século XX. Segundo Palmer (2001, p.188, tradução nossa) “O pensamento de Heidegger tem se repercutido em todos os meios intelectuais, tendo influenciado campos diversos como a teoria literária, a teologia (tanto católica quanto protestante), a psicologia, a teoria política e a estética”. O meio ambiente, portanto, não seria uma destas áreas em que Heidegger não tocasse, afirma Palmer (2001, p.189)
Heidegger argumenta que no mundo moderno nós estamos, cada vez mais, convictos de que as coisas chegaram a revelar elas mesmas como tecnologias. À revelação tecnológica, Heidegger a associa com uma disposição ou um desafio da natureza. Ele diz-nos que ela faz a irrazoável demanda que toda a natureza submeta aos fins humanos, que todas as coisas revelem em si mesmos como ‘estoque’ (Bestand), como recurso para nosso uso.
A crítica que Heidegger faz à técnica é, ela mesmo, um alerta e uma preocupação com as relações entre os entes. Sua discussão evolui até seus textos sobre o habitar que é um modo de compreender as relações ontológicas entre humanos e não humanos (incluindo aí a tecnologia).
A questão ambiental tem tomado um rumo desde um ponto de vista que muito se esforça por se estabelecer para além da phusis, isto é, de uma posição metafísica. Tal posição é indicada na obra de Martin Heidegger pela palavra habitação, não designando a relação parte-todo da ecologia nem o ponto de vista do pensamento metafísico, que se situa por toda a parte em lado nenhum. Orientando-se para as esperanças elusivamente simples de reabilitar a terra e preservar a sua integridade – e, no entanto, partindo da ‘questão do ser’ e não a partir do ponto de vista das ciências naturais – a obra de Heidegger proporciona uma interpretação alternativa da nossa crise ambiental (FOLTZ, 1999)
Todavia, a reflexão heideggeriana não contradiz o ponto de vista científico ou mesmo as reflexões que são por ele orientadas. Se as suas respostas são diferentes, é porque as suas perguntas, ao perguntarem aquilo que as ciências, em princípio, não podem perguntar, são de um caráter inteiramente diferente. Se, por outro lado, o seu pensamento leva a questionar a própria ciência, não é para torná-las inválidas, mas para entender as suas limitações. O pensamento de Heidegger serve para preparar uma nova compreensão do desenvolvimento a partir do próprio lócus da conceitualidade ocidental (FOLTZ, 1999). Estas reflexões de Heidegger têm contribuído muito para a chamada “deep ecology”. Neste sentido, a escolha de Heidegger não seria, em si mesmo, uma novidade, mas um caminho que já tem alguns passos percorridos.
[3] Uma terceira razão está no modo como Heidegger contribuiria para problematizar a modernidade. Esta, por sua vez, foi mostrada por Leff (2016), a partir da obra de Heidegger intitulada “A época da imagem do mundo”. À luz deste filósofo, Leff (2016) entende que as ciências de modo geral são instituídas por meio de uma “compreensão de mundo” a qual correspondem à essência e ao caráter específico da Modernidade. Estes (a essência e o caráter da modernidade) são frutos da tese ontológica heideggeriana denominada “História do Ser” (história da metafísica) e para compreendê-los é necessário ter em mente: [a] a compreensão de mundo baseada no modo de interrogar a totalidade do ente fundada no cogito cartesiano; [b] a compreensão da verdade calcada na epistemologia da representação (adequatio) que faz a mediação da realidade por meio de uma imagem; e [c] a perda dos limites da objetivação por meio da racionalidade que calcula a representação e a torna acessível a todos. Estes fatores descritos evidenciam uma hegemonia de compreensão de mundo e, por esta mesma razão, resultaram na crise ambiental.
[4] Uma quarta razão está no fato de que o pensamento pós-moderno – crítico à modernidade – reconhece no pensamento de Heidegger uma base inegável enquanto ponto de partida. Lévinas, Deleuze, Derrida, Foucault, Vattimo e outros evidenciam a necessidade da emancipação da filosofia e da ciência hegemônica legada pela história da metafísica, tal como foi pensado por Heidegger. [5] Uma última razão está na proximidade e anterioridade dos escritos de Heidegger com respeito às questões da técnica e do habitar (categorias estas fundamentais para discutir o meio ambiente e o desenvolvimento). Como já foi várias vezes dito, a chamada crise ambiental foi sentida, refletida e propagada como fenômeno global a partir dos anos 70 do século XX. Contudo, Heidegger, nos anos 50, já antevia as consequências que o mundo técnico traria para a humanidade. Os textos do filósofo por meio do qual esta pesquisa se debruça com mais força são os textos desta década (1950), cuja reflexão está apontando para esta mesma direção. Heidegger, em função desta contemporaneidade, deve ser inscrito como um dos teóricos necessários para a compreensão das teorias do desenvolvimento. E por esta mesma razão é que a intenção da pesquisa é, à luz de Heidegger, oferecer certos prolegômenos à discussão do desenvolvimento a partir da discussão ontológica do pertencer.
Em suma, para tecer um questionamento substancial ao discurso do desenvolvimento, enquanto discurso da metafísica no modo econômico, é necessário promover um debate sério com seus modos ônticos de manifestação. Heidegger mesmo dizia que não teria como acessar a compreensão ontológica sem a compreensão ôntica. Portanto, é necessário realizar uma discussão ôntico-ontológica com três grandes fenômenos que estão onticamente ligados à teoria do desenvolvimento, a fim de evidenciar a presença do discurso da metafísica e realizar, assim, a crítica. Estes fenômenos são: o Meio Ambiente, a Geografia Humana e a Economia. A discussão ôntico-ontológica com estes campos permitirá abrir os seguintes problemas, respectivamente: o problema do humanismo (a crítica da ideia de sujeito moderno e o lugar do homem no desenvolvimento), o problema do território (a matematização e a desterritorialização do local) e o problema da erradicação do desenvolvimento por meio da economia global.
A fim de recolocar a questão do modo de ser do fenômeno do desenvolvimento, em termos de sua possibilidade reconciliada com o território, é necessário vê-lo à luz da superação da metafísica proposta por Heidegger. A insistência desta proposta hermética heideggeriana, ainda que muito criticada, se justifica por meio desta nova interpretação de Heidegger, clareada pelas questões da teoria do desenvolvimento. Superar a metafísica, em linhas gerais. é compreender o “esquecimento do próprio esquecimento” e propor uma linguagem que permita um “enraizamento”. Para tanto é necessário discutir:
[A] as razões pelas quais os modos de compreensão do ser dos entes estão sempre comprometidos, impedindo, de algum modo, sua teorização (pré-fixação). Em outros termos, o aparecimento do ser é sempre um mascaramento e ter consciência disto – não esquecer isto, em linguagem heideggeriana – permite que os entes sejam aprisionados e prefixados.
[B] a necessidade de compreender que os modos de ser dos entes devem estar ligados a uma linguagem originária, ou seja, ainda que não há como determinar o aparecer do ser dos entes, sua linguagem, local privilegiado de seu aparecer, é possível determinar
[C] a determinação da linguagem doadora de sentido ao ser permite abrir um horizonte para a tematização das relações territoriais. Segundo Heidegger, a linguagem é morada do ser e o que podemos determinar são as relações possíveis que esta linguagem oferece. As relações possíveis desta linguagem é a conexão com os modos de entes de modo livre, ou seja, a linguagem originária a qual o ser se doa nos permite “pertencer”. Pertencer não é ter posse e nem ser possuído, é reconhecer a mútua-dependência ontológica a qual todos “podem-ser”. Deixar-ser é a manifestação da pertença, sem nenhuma manipulação e estocagem. Deste modo, o novo discurso, superado da metafísica, é o desenvolvimento entendido como habitar. Habitar é desenvolver, pois, antes de qualquer modificação, construção, aceleração e ganhos, é necessário co-existir. É necessário reconhecer e descrever fenomenologicamente as relações de uma territorialidade: a quadratura.
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