A Dúvida ou o Susto? Uma tímida releitura do embate entre Racionalismo e Empirismo
Neste post quero divagar sobre duas posturas epistemológicas (ou gnosiológicas) bem interessantes e que deu muito "pano para manga" na história da filosofia, são elas: racionalismo e empirismo. Antes que você desista da leitura argumentando que este debate é ultrapassado, algumas informações preliminares:
1. É claro que eu sei que Racionalismo e Empirismo já foram sintetizados. Conheço Tomás (no caso de uma síntese clássica) e Kant (no caso de uma síntese moderna).
2. É claro que eu sei que existem muitos textos que abordam este debate muito melhor do que eu, como: o debate entre Anselmo e Gaunilo que se encontra no Proslogium e todos os Ensaios ou Introdução sobre o entendimento humano (Locke, Hume e Leibniz).
3. Quero conduzir este debate por dois fenômenos: a dúvida e o susto. Encabulou? Então acompanhe.
As ideias centrais entre os racionalistas são: a razão tem prioridade ontológica na epistemologia, ou seja, se o conhecer é sustentar o que se crê (como já dizia Platão no Teeteto), então a razão teria esta primazia de sustentação e validação do conhecimento.
Nada há no intelecto que não tenha passado primeiro pela experiência, exceto o próprio intelecto!
As explicações para esta premissa podem ser assim descritas:
a) a razão tem uma condição natural imaterial, o que facilita a manipulação de nossos pensamentos que seriam, em teses, imateriais e do reconhecimento de sua validade (de sua veracidade) que também é imaterial;
b) a validade ou a verdade de nossos pensamentos - para que sejam reconhecidos como conhecimentos - deve ser identificada por meio de sua necessidade e de sua universalidade;
c) a razão seria, em tese, a instância que, por primeiro, teríamos acesso, ainda no ventre materno, ou seja, é a parte de nós mesmos que mais nos é próxima;
d) não precisaríamos da experiência para validar nossos pensamentos, já que a razão teria, per si, tudo o que é necessário para lidar com os pensamentos, ou seja, carregamos imanentes a nós mesmos os critérios do reconhecimento da verdade;
e) as experiências são particulares, condicionadas pela temporalidade e são enganosas, já que recebem dados mutáveis e factíveis de parcialidade.
As ideias centrais entre os empiristas são: a experiência tem prioridade ontológica na epistemologia, o que se conhece, é fruto de uma experiência sensível com algum objeto.
Nada há no intelecto que não tenha passado primeiro pela experiência!
As explicações para esta premissa podem ser assim descritas:
a) a razão é meramente instrumental, ou seja, uma aparelho de ordem biofísica que contribui para o conhecimento, enquanto que o conhecimento em si mesmo, a sua essência, vem daquilo que ele recebe;
b) todas as coisas que existem devem ser experimentadas sensorialmente, ou seja, devem ser recebidas de fora da mente; esta experiência nos passa a segurança e a certeza de que "vimos por nós mesmos" e não por meio de outro;
c) é por meio de uma experiência sensorial que estruturas inatas podem ser percebidas, ainda que nada comprove sua existência;
d) sem a experiência, não seria possível pensar em razão prática ou aplicada, ou seja, não seria possível pensar em ação, em valores, muito menos em percepções estéticas;
e) todas as experiências particulares podem ser repetidas e garantidas quantas vezes forem necessárias, a universalidade do conhecimento não está na sua essência, mas na garantia da repetição e da verificação.
Porém, proponho-me a revisitar este debate de outra forma: o que tem primazia ontológica, a dúvida ou o susto? Explico-me.
Retomando Descartes, a dúvida é o passo primeiro para todo o desenvolvimento da filosofia cartesiana. Porém, a dúvida de que fala Descartes é provocada, ou seja, é uma dúvida previamente posta no início como ponto de partida de seu pensamento. Agora, existiria uma dúvida espontânea? Mais do que dúvida, estamos tentando pensar naquele estranhamento subjetivo que, ora ou outra, nos assola e nos pões em questão todas as coisas. Este repentino estranhamento-questionador não carece de um objeto a sua frente para que ele possa aparecer. Em outras palavras, parece ser inegável que, vez por outra, nós nos pegamos em situações de puro estranhamento e este nos abre um fosso de perguntas.
Pensar que somos assolados por repentinos estranhamentos-questionador, parece, oferece uma ponta de esperança ao racionalismo. Mas como? Se reconhecemos duas coisas: [a] que o racionalismo defende que a razão subjetiva é a fonte de verdadeiro conhecimento e [b] que hoje nós temos uma diferença muito clara entre informação (aquilo pelo qual somos rodeados sensorialmente todos os dias e não sabemos se é ou não válido) e conhecimento (aquela informação realmente válida). Então, estas duas premissas alimentam a esperança racionalista.
Tomando a definição que racionalismo é primazia ontológica da razão para o ato de conhecer, o estranhamento-questionador seria a única fonte possível de acessarmos o conhecimento em um mundo que só tem informação. Ou seja, o ato primaz e veraz ontológico da verdade é da razão, em por todas as coisas em questão.
Por outro lado, também podemos pensar o empirismo por outro viés. Empiristas defendem como premissa a experiência. Porém, do jeito de esta é posta, dá mesmo a impressão que a experiência é uma coisa somente permitida pelo sujeito particular, caindo na determinação ontológica do sujeito. Mas e se pensarmos, no lugar de experiência, o susto? O que é o susto? O susto é o que vêm ao meu encontro "sem eu querer". Esse é o dado importante. Ao defender a experiência, o empirismo, por mais que se admita a sensação, ainda tende a dizer que é o sujeito racional que faz a experiência, dando muito crédito ainda para a razão.
Se penso em termos de susto, a tônica muda. Susto é um fenômeno inteiramente imprevisível. Não depende do sujeito. No susto, o sujeito é passivo e o objeto experimentado é o protagonista, foi ele que veio. No susto, todas as faculdades sensitivas são forçadas a perceber, são postas em ação em detrimento daquilo que chega. Neste sentido, o ato primeiro, a primazia ontológica é o objeto enquanto tal. E só poderíamos realmente reconhecer o que as coisas são, experiencialmente, quando somos surpreendidos, quando a razão se rende ao que vem. Daí, o empirismo ganha nova força. Não basta pensar na experiência como fonte primaz, mas no susto como fonte primaz. E, é fato, que somos surpreendidos a todo momento e que nossa passividade neste ato primaz é que nos coloca em movimento epistemológico.
Neste sentido, temos novamente o embate - claro, não mais pensado no cladograma moderno, mas em uma perspetiva mais fenomenológica - o que é ontologicamente primaz: o estranhamento questionador ou o susto? Que fenômeno seria, em tese, o movimento epistemológico primeiro? O estranhamento questionador, esse assolamento subjetivo que nos provoca a duvidar para rever, ou o susto, esta passividade diante de uma agressiva invasão do outro que vem? Fenomenologicamente falando, ambos, são constituidores epistemológicos, diante de um susto ou de uma questão, é inegável que há um movimento em direção ao conhecer. Na dúvida, no desconforto, me revolvo da intencionalidade epistêmica; no susto, na agressão, foco-me intencionalmente ao epistêmico. Creio que isto é um ensaio e não me obrigo nem a responder e nem dar validade ao que aqui foi dito. Cabe aos que lerem emitir o julgamento deste: por susto, talvez, ou por dúvida....
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